Movimentos sociais se mobilizam por melhorias em comunidades de SP

Cultura

Cidade com nome de santo, é inegável o protagonismo da igreja católica na fundação e nas diversas dinâmicas que aconteceram e acontecem na maior cidade do país. Dentre tantas figuras relevantes, como o padre Júlio Lancellotti e o seu trabalho com a população de rua; Dom Paulo Evaristo Arns e sua luta contra a ditadura militar; escolhemos nesse aniversário de 470 anos de São Paulo contar um pouco da história do padre irlandês Jaime Crowe e sua articulação com os movimentos sociais por melhorias no extremo da zona sul de São Paulo. Nascido em 1945, na Irlanda, padre Jaime Crowe foi criado em uma família católica e dessa forma escolheu o caminho do seminário.

Aos 24 anos, em 1969, chegou ao Brasil na cidade de Embu das Artes. E na década de 1980 entrou na Paróquia Santos Mártires, no Jardim Ângela, considerado na época um dos bairros mais violentos em São Paulo.

Regina Paixão Gomes, atual presidente da Associação Sociedade Santos Mártires, do Jardim Ângela, falou dessas lembranças na sede da associação.

“Eu vim a pé e, de fato, passava por alguns cadáveres. Infelizmente, a gente começava até a se acostumar, mas o padre Jaime começou a ficar incomodado, ‘a gente está enterrando nossos jovens’ Eu estou sendo chamado pra rezar em cima de jovem morto’ e, de fato, nesse recorte pobre, preto, periférico, que eram levados pro São Luís, Cemitério Municipal, onde as pessoas não tinham condições. Como padre Jaime não estava conformado, ele começou a mobilizar a comunidade. ‘Ô diretor de escola, vamos lá, vamos fazer alguma coisa, pessoal da UBS, como a gente pode somar’. Porque a violência, não é violência em si, pensar em segurança pública, né? É um conjunto de ações.”

Padre Jaime foi um dos fundadores da caminhada pela vida e pela paz realizada todo ano no dia 2 de novembro. Inconformado com a violência e as carências na região do Jardim Ângela, M’Boi Mirim, Capão Redondo, ele e outros líderes de movimentos sociais se mobilizaram para reivindicar do poder público as melhorias na região.

O gerente de comunicação da sociedade Santos Mártires, Carlos Alberto de Souza Júnior, falou a respeito desse contexto.

“Acho que tem dois elementos bem legais da região. É o padre Jaime e é o Racionais, que pegam o triângulo da morte, que retrata a partir da religião e da cultura como esse território tem gente que pode fazer transformação. Então, acho que esse movimento que a gente começa a sentir aqui, e aí tem esses movimento sociais, que a gente tinha um seminário que chamava ‘Jovens Construindo o Futuro’, reunia jovens de diversas escolas, diversos movimentos pra vim dialogar aqui, usando o prédio da igreja, mas de vários movimentos. Como a gente pode ter políticas, não de futuro pra daqui a 20 anos, quando a gente deixa de ser adolescente, é criança e vai virar adulto, mas políticas de emergências para agora, pra dar conta desse território.”

“Nós, aqui na sede, a gente recebia muita ligação, muitos repórteres. Eu sempre gosto de dizer que eu já atendi a grande mídia e quando eles ligavam era assim, ‘ai, você pode me levar na casa de uma mãe que acabou de perder o filho? Nós não, não podemos’. A gente começou dar a resposta inversa: ‘não, a gente deixa você vir aqui pra ver os trabalhos que existem no território, que tem gente boa, tem pessoas trabalhadoras, todas as defasagens’. E aí começa também uma resposta contrária e vem a primeira caminhada pela vida e pela paz. ‘Ah, porque que vocês caminham no dia 2?’ Primeiro era assim, vamos dar uma resposta diferente pra mídia?”

Lucila Pisani, do Centro de Educação Popular do Campo Limpo, também falou com a gente por telefone dessas memórias das primeiras caminhadas pela paz. Ao longo dos anos, a caminhada agregou outras religiões num processo democrático, participativo e de respeito entre os líderes religiosos.

“Ele ajudou a organizar, tinha muitas ideias, vários exemplos, dentre eles eu quero destacar as romarias. Romarias que nós fizemos, caminhadas pela vida e pela paz. Que já estamos indo pra 28 caminhadas, que é um marco muito importante da nossa luta contra a violência, de muitas conquistas. Que nós tivemos na região, tanto de organização da população quanto de manifestação. De manifestar a indignação com tantas mortes, com tanta violência.”

“A emoção, a energia, como essa coisa das pessoas estarem muito na mídia negativamente, incomodava. Então, participar de branco da primeira caminhada sem tanta estrutura, isso a gente ouve falar das primeiras, eu já entrei na terceira e eu também queria entender como que era isso, onde as pessoas vão a pé, né? E a energia, o respeito, a responsabilidade, do porquê estar ali, foi um fato histórico, né?”

“Sempre presente tanto nos movimentos, nas ocupações, né? Com o povo quando estava sendo despejado, ele estava lá presente. Como também na formulação de políticas públicas. Que nós fizemos em várias áreas, na área da saúde, da segurança pública. Essa interlocução com o poder público, pra que realmente as pessoas poderiam ser ouvidas. Então é uma pessoa que é uma referência, uma referência de Direitos Humanos.”

“Todas essas lutas ou tudo que a gente tem aqui são fruto de lutas. Então nada aqui que aconteceu, que apareceu, independente do estresse político do governante. Nada aqui em M’ Boi foi algo que alguém acordou e foi levar lá porque o pessoal precisa. Foi fruto de luta, de debate.”

“Nós sempre entendemos que um fórum é suprapartidário, inter-religioso. Então, por que focar numa cerimônia só católica? Essa foi uma luta de vários anos. Foi puxada pela igreja católica, sempre os padres estavam à frente. Como que a gente vem agregando? Desde a pandemia nós fizemos caminhadas virtuais. A gente ia lá fazer uma cerimônia e a gente vem destacando isso. Qual que é o líder religioso que topa estar com a gente na causa? Coincidentemente, o ano passado nós vivemos aí, nós participamos, vimos, assistimos nessa questão da discriminação, principalmente dos candomblicistas, matriz africana, todos, né? Mas já é um costume deles estarem com a gente. Às vezes mais timidamente, né? Não vou no cemitério, os tambores não combinam com dia 2, mas dos líderes, desses que estavam com a gente, são pessoas de nossa base. Então, por mais que seja uma resistência interna, eles já entendem o porquê caminhar, porque se mostrar.”

“Mas tudo isso que eu posso dizer é de que é uma região que conseguiu sair, por um período, desse mapa da violência. Grave e que tem várias organizações. O povo foi estimulado e justamente, se organizou como movimento social, se organizou religiosamente, se organizou politicamente, então a gente tem uma região forte na cidade de São Paulo, que tem voz. E eu acho que é isso que nós escolhemos. Agora é lógico, é uma população, um lugar de muitos problemas estruturais. Essa luta não para, ela continua.”

“Não só pra mim, que tive um direito fundamental garantido, que parece que a gente é a exceção da exceção. Mas eu acho que uma coisa que a Santos Mártires fez com a gente, com aquele monte de moleque que passava na minha época, com a época eu fui educador, com os meninos que eu consegui transformar também, atuar, é de colocar na cabeça das pessoas que a gente não pode ser a exceção da regra. Que o nosso direito precisa ser a regra. Então todos os meninos deviam ter a mesma oportunidade, de fazer um curso da hora, de poder ter uma boa refeição, de poder ter um bom conteúdo, de poder ter uma vivência cultural diferenciada, de conhecer a matriz africana, o carnaval, um sarau, um museu. Coisas que a gente ainda não consegue garantir, que é um direito fundamental, mas que essa molecada não está.”

 

Este Radiodocumentário foi feito em parceria com o Radiojornalismo EBC e a Radioagência Nacional. Ouça os outros episódios da série de reportagens sobre os quatrocentos e setenta anos de São Paulo.

* Com reportagem de Nelson Lin, a produção de Guilherme Strozzi, coordenação de processos de Beatriz Arcoverde e sonoplastia de José Maria Pardal.

Fonte-Agência Brasil

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